sábado, agosto 09, 2008


NASCIMENTO

Nascem os homens como deuses pobres
Nus e de um ventre que desesperou
De os guardar
Sagrados e secretos no seu lago.
Nascem disformes, sem nenhum afago
Da raiva desabrida que os expulsa
E das mãos aterradas que os recebem.
Bebem
O ar do mundo aos gritos
Olham sem ver, e são
Surdos e transitórios mitos
Da nossa devoção

Miguel Torga

O António começa bem...


Começa a mangar com isto, que é a única forma séria de começar.

domingo, março 09, 2008

Parece-me que se está a gerar um clima de guerra entre fumadores e não fumadores que seria divertido se se passasse num país evoluído, irritante se ocorresse entre americanos, perigoso entre nós.

A história é esta:
Um amigo enviou-me o endereço de um site de reclamações. Curioso, fui ver. Benfiquista assumido (mas complacente), espantei-me perante uma das reclamações que transcrevo:

"Nome produto / empresa / serviço ou website
Sport Lisboa e Benfica
Título da reclamação :
Charutos e cartões de sócio
Reclamação:
Por o espaço ser próprio para reclamar, quero aqui deixar o meu desagrado por duas situações distintas: Tenho lugar cativo no estádio da luz, juntamente com o meu irmão e o meu sobrinho e infelizmente temos de levar com o fumo do tabaco de dezenas de individuos à nossa volta, e especialmente com o fumo do charuto de um indivíduo que demora exactamente 45 minutos (a 1ª parte dos jogos) a fumá-lo. Isto em TODOS os jogos. É que o estádio é ao ar livre mas o fumo vem para cima de nós à mesma. Ora apesar de não ser obrigado a ir lá, acho vergonhoso, indecente, para não dizer nojento e criminoso, o facto de crianças e não fumadores"

Para além da singularidade do preenchimento dos itens, fui atraído pelos comentários (transcrevo):

"Comentário de Carlos Jorge
Desde que a lei contra o fumador foi aprovada apareceu outro tipo de RACISMO"

"Comentário de Paulo
Meu amigo, o que é que a reclamação tem a ver com racismo? Então acha bem uma criança levar com o fumo do tabaco durante 90 minutos? Tenha juízo e respeito pelo próximo. Você precisa é de tratamento mental."

"
Comentário de Sara costa
100% de acordo com a reclamação."

"Comentário de Tiago Mota
Sr. Carlos Costa, está equivocado. Não existe nenhuma lei contra o fumador. Existe uma lei que regula os locais onde se pode e não se pode fumar. O seu egoísmo é que o faz olhar apenas para o seu umbigo e não para quem está À sua volta."

"Comentário de Rute
Se tivessemos de fumar teríamos chaminé. Agora os fumadores têm a mania que são perseguidos. Pois é, andaram anos e anos mal habituados, sem respeitarem ninguém. Tratem-se. Portugal está a seguir o caminho mais justo, de protecção ao fumo passivo, tal como qualquer país civilizado e justo tem obrigação de fazer. Mas este exemplo demonstra que ainda não chegámos lá. Tal como os vários exemplos de cafés e bares que não respeitam a lei e nada lhes acontece. Aos fumadores indignados (que felizmente não são muitos) tenho um pedido a fazer- deixem de ser egoístas."

"
Comentário de Paula
Se não é proibido fumar não pode reclamar! Tem de se aguentar! os fumadores tambem tem de se aguentar a ir fumar para a rua quando é proibido em locais fechados! Os não fumadores estão a ser pobre e mal agradecidos!"

Comento eu:
Em Portugal somos avessos à tolerância (em minha opinião, resquícios de um passado pouco democrático). Sócios de um clube, cultivamos um ódio violento pelos dos outros. Filiados num partido, dedicamos uma raiva sanguinária aos filiados nos restantes. Quando naturais de uma região, desenvolvemos contra os natos nas rivais rancores assassinos.

Bem vistas as coisas, o que nos move parece ser uma mesquinhez genética. Qualquer poder que nos seja atribuído é considerado oportunidade para abuso e determina, obrigatoriamente, a humilhação do próximo mais vulnerável. Daqui decorre uma incapacidade substancial para o exercício da cidadania, no entendimento mais evoluído.

Creio que a falha social fundamental é a do reconhecimento do Outro como igual. Somos, por princípio, avessos à contemporização. Os sintomas são quase infinitos e quotidianos: desrespeito das bichas de trânsito pelos espertos que se metem “à má fila”, assalto aos lugares da frente quando em qualquer serviço “abre” nova fila, pelas pessoas da retaguarda das bichas existentes sem qualquer respeito pela ordem de chegada, etc., etc., etc.

Acredito que, se a preocupação aqui em apreço fosse, de facto, o fumo passivo das crianças (ou mesmo o dos adultos), os interessados ter-se-iam, de imediato, dirigido amistosamente e com a maior das delicadezas ao fumador (legalmente, ele tem o direito de fumar ali) solicitando a sua colaboração para o problema, sugerindo uma troca de lugares, etc. Isto é: teriam partido do princípio de que ele teria (como, de facto, tem) tanto direito a fumar um charuto a acompanhar o futebol (coisa que obviamente lhe dá prazer) como eles o de não serem incomodados pelo facto. Nessa base buscariam, muito provavelmente, uma solução para a questão.

Aquilo de que, com toda a franqueza, suspeito, é que o que se pretendeu tenha sido aproveitar a actual receptividade a um fundamentalismo (antitabágico) importado dos USA, agora muito em “alta” na Europa cada vez mais imitadora dos extremismos americanos, para o exercício do poder que as leis actuais reconhecem, muito para além dos limites da sua letra, abusando de um clima hostil sobre os que fumam.
Há em Portugal (e creio que noutros países semelhantes) uma deriva para a crueldade. Uma espécie de institucionalização da arrogância. Uma legitimação da desumanidade. Sempre escudadas em pretensas exigências de excelência.

Esclareço que há mais de 8 anos que não fumo e que o fumo, actualmente, me incomoda. Até no cheiro que se infiltra na roupa.

quinta-feira, março 06, 2008

A propósito dos comentários (desiderato matinal)



























Escrever é como compor, como pintar, dançar, esculpir.
É uma pulsão incontornável, uma urgência em comunicar,
Encontrar gente, ser gente, sentir,
Partilhadamente.


Aqui é, também, humildemente,
O sítio de aprender
A verdadeira liberdade,
Somar à ciência do erudito
A sabedoria da ignorância,
Buscar o lugar geométrico
Da tolerância

terça-feira, janeiro 15, 2008

As flores I

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Estou sentado à mesa da sala, virado para a janela grande. À minha direita está, como sempre, a jarra. Desde sábado, uma braçada de rosas-chá marca o espaço.

Nunca consegui explicar porque é que as flores me fazem uma companhia tão fundamental. Numa introspecção superficial emerge, apaziguadora, a sensação de beleza. Subliminar a todo o meu “estar”. Este “estar” que, destituído desta presença cai, com demasiada naturalidade, na instabilidade e na melancolia. Quando, em maré de reflexão, me alheio dela (seja porque não as haja – o que é raro – seja por não as ver), é quase certo que me invade a nostalgia.

Volto-me então para a janela das traseiras que o sol não alcança. Mergulho naquela solidão absoluta que faz do silêncio o primeiro plano da realidade e da meditação essa serena viagem aos confins da alma. Como se o mundo se calasse e nos deixasse a sós com o nosso destino…
As flores são os antípodas disto. Ficam a sul. À luz forte do meio-dia. Restauram, com a serenidade das certezas, a alegria do viver. Filosoficamente estabelecem a precariedade definitiva da existência. Paradigma da dignidade da beleza perante a evidência de um desaparecimento tão próximo como inevitável…

Info-inabilidade

Quando retomei o “pensorápido” quase tudo o que autodidacticamente tinha aprendido com ele se me varrera. Ainda para mais, o modelo tinha, entretanto, sido alterado. Automaticamente apareciam alterações e actualizações que implicavam decisões assustadoras. Naveguei como pude e pareceu-me que tinha conseguido manter o essencial da imagem a que o associo. Subitamente o texto toma uma cor inesperada e ilegível que (há males que vêem por bem) desencadeia mais comentários que nunca na gente da minha geração (presumo) muito dependente da ajuda óptica…

Curiosamente verifico que o verde do fundo não agrada. De imediato não consigo prescindir dele. Mas prometo que vou ponderar. Há razões de(coração)… À laia de compensação e após um martírio de experimentação, consegui alterar a cor das letras dos textos das mensagens (é assim que agora se designam (e bem) os posts). Creio que está, pelo menos, legível.

sábado, janeiro 05, 2008

O salto


Este que aqui se vê, paralisado nesse tempo mágico que é o das fotografias, é Conrad Schumann, guarda-fronteira da RDA até brevíssimos instantes antes do disparo da câmara, neste 15 de Agosto de 1961. Dificilmente se percebe, mas a sua bota calca o arame farpado da barreira instalada dois dias antes sobre a linha, até então imaginária, que dividiu Berlim.

Sabe-se, porque o contou quem assistiu, que este jovem de dezanove anos andou todo o dia numa agitação tão evidente que chamou a atenção dos fotógrafos que por ali se mantinham. Um vai e vem nervoso até um ponto determinado da barreira onde baixava sistematicamente, em jeito pouco convincente de rectificação, a altura do arame farpado. No sítio exacto onde agora tem a bota.

Conrad está prestes a largar a arma, numa urgência de arrependido. Há dois dias que lhe queima a consciência. Quando ela tombar, no instante seguinte, terão caído por terra, também, as suas ilusões. O ideal cedeu ao real. A fé ao pragmatismo. Sabe, enfim, que escolheu o lado certo da vida.